top of page

AFETOS E ERUPÇÕES NA

POESIA DE CELSO DE ALENCAR

por Rogério A. Tancredo

A poesia está em todo lugar, encontra-se escondida e disfarçada sob as múltiplas formas nos parques, nas montanhas, na mala de um viajante solitário, no caminhar de um cachorro vira-lata, enfim, nesse universo que chamamos relidade. Ela está nos pequenos e grandes gestos da vida, e só o poeta consegue apreendê-la – por isso é poeta - com todo sua carga e potência dentro do poema que não passa dá realidade transfigurada pela magia das palavras. É desses pequenos e grandes fatos do mundo como uma criança andando de bicicleta ou a morte da pessoa amada que surge a poesia de Celso de Alencar, poeta nascido em Fortaleza, criado em Belém para onde veio aos cinco anos de idade, e acolhido desde 1972 em São Paulo, cidade onde conviveu com ninguém menos que Roberto Piva. “Nessa época eu recitava poemas nas ruas”1 diz o autor de O Coração dos Outros” seu último livro. Título pujante que esconde uma força lírica latente no âmago de seu significado assim como os poemas que o compõem. “Este é um livro de parábolas”, escreve Floriano Martins na orelha, acertadamente, pois seus versos então cheios de verdades. Verdades que se dirigem para o coração dos homens, assim como a poesia, onde se encontra com ela mesma, pois é lá - no coração - que nasce, profana e mundana. Afinal, este fora o órgão escolhido pela natureza para suportar as dores dos golpes e as emoções da vida. Allen Ginsberg, em outubro de 1963, em entrevista a Ernie Barry fala de um compartilhamento de sentimentos “só através do afeto e da ternura é que teremos um mundo mais seguro para a prática da democracia” (GINSBERG, 2013). E a poesia, é um dos modos, senão o mais eficaz, de compartilhar sentimentos, ela nos une pelo que sentimos em comum, o que está guardado no coração.

O poema que abre o livro de Alencar traz como título a palavra “Miséria” que resume a miríades de sentimentos que nos ocupa a alma, ao mesmo tempo o fim que estamos fadados, tudo isso ligado a nossa existência trágica e finita. O poema trata de alguém que perdera a pessoa amada, e a miséria é tanto de quem fica, quanto de quem parte, porque os que se amam estão separados para sempre. Por isso é importante aproveitármos o máximo possível os momentos ao lado de quem amamos:

Já não temos outro dia.

Já não nos aproximamos da mesma árvore.

O nosso último encontro foi no Crystal Parque

Quando poucas palavras trocamos e,

Depois que viste os patos no lago,

Disseste ao homem que te acompanhava

Que não te sentias bem, querias ir embora,

Sentias gafanhotos andando nas tuas costas.

 

O que fora um encontro mágico entre duas pessoas, que engendrara o amor e a vontade de ficar juntos, agora era interrompido pela morte, isso pode até parecer clichê, mas no contexto do livro que tem como título o coração dos outros, o poema toma as devidas proporções:

[...] Há um couro de serpentes pregado na parede

E uma tela, uma paisagem, de rios correndo

Entre duas grandes montanhas ensolaradas.

Já não temos outro dia.

Já não temos outro dia para falarmos

Das nossas almas estranhas.

Nunca mais andaremos nos trilhos da ferrovia

Nas noites em que as chuvas se pronunciavam

[...] agora eu limpo o sangue da tua boca

Sempre limpei teu corpo todo.

Limpo agora neste teu último embarque [...]

A morte – musa inspiradora dos poetas – é um dos temas do livro. Está ligada, na poesia de Alencar, a passagem do tempo e ao recomeço de um ciclo, ou seja, ao próprio mistérios da morte que é o mistério da vida. Por vezes ela aparece suave e leve sob olhar de uma criança como no poema “Um dia eu irei para o céu”:

 

Papai e mamãe estão mortos entre os mortos.

Morreram inesperadamente no dia

Em que morreu Jesus Cristo.

Ressuscitaram no primeiro dia do ano

E agora e para sempre estão no céu.

A fé judaico-cristã ao qual fomos concebidos e a crença na ressureição de Cristo estão explícitos na visão do menino, que vê na morte não o fim, mas a continuidade da vida em outra esfera:

[...] Eles estão no céu onde tocam as clarinetas

E eu sei que os olhos

que vejo no olho mágico

São os olhos deles.

E sei bem que,

entre esses pássaros fabulosos com penas acessas

Aglomerados no final da tarde,

Nos galhos mais altos das árvores,

estão eles.

Ainda sobre o tema da morte, temos o poema “O último italiano” feito para o amigo Roberto Piva. Celso de Alencar conta que fora buscar Piva uma vez já muito doente no hospital e que no momento que o levava para casa passou um caminhão de mudança, que não significara absolutamente nada, senão fosse menção a André Breton – escritor caro para toda uma geração, que disse: “Quando eu morrer quero ir no caminhão de mudança”, alusão e brincadeira com o materialismo, afinal, caixão não tem gavetas e nenhum enterro sai acompanhado de mudança. Celso diz que quando escreveu o poema não fez de imediato o link com o que dissera o autor de Nadja, mas os deuses da poesia se encarregaram da coincidência, e o caminhão de mudanças entrou no poema - por sinal - o fato acontecera no aniversário de morte de Breton. Neste trajeto funesto e carregado de poesia, o amigo italiano, desenganado pelos médicos, pedia para Celso não falar nada para seu amante:

Estava tranquila a rua.

Poucos automóveis circulavam.

Nenhum veículo de grande porte,

Exceto um caminhão de mudança

Transportando moveis velhos

E uma geladeira enferrujada [...]

implorou-me que nada falasse

Para seu amante, seu namorado.

E dizia-me, debaixo de um choro convulsivo, trêmulo,

Que se angustiava pois gostaria de deixar

Uma moradia para o homem

Que lhe trouxera por muito tempo as melhores alegrias [...]

A “onisciência” do homem advinda da racionalidade, que o coloca como sujeito superior aparece em “Sábios” cujo os sábios não somos nós, mais sim os animais, que estão lançados no devir, acolhendo em si o destino e o tempo que o universo os legara, sem grandes questionamentos, versos que se confundem com o do camponês Alberto Caeiro, o poeta do sentir:

[...] Vejam o barco deslizando entre as árvores

E as águas tranquilas do pântano.

As cobras, os pássaros, os jacarés

Alimentam-se do tempo.

Todos são perfeitos.

São sábios.

Nenhum trata daquilo que lhe é alheio [...]

O mal não pertence ao mundo, o mundo é bom, o ardil vem do homem que a tudo coloca a seus pés e domínio, e se somos feitos a imagem e semelhança de Deus – o criador - então Deus é mau? é o que levanta o poema “Deus não é bom”:

[...] A crueldade alcança ainda os gatos e cachorros.

Guarda-os em casas e palácios, chama-os de filhinhos,

Dá-lhe seu nome e decepa-lhes o sexo.

Destrói-lhes a liberdade.

Destrói-lhes uma das substância da vida: o orgasmo.

Gatos e cachorros não podem gozar.

Estão proibidos. O homem não quer que gozem.

Definitivamente o homem não é bom.

Deus disse: foste criado à minha imagem e semelhança.

Deus não é bom.

A violência para com os animais volta em “O Boi”, e é interessante focar nisso, porque é um tema atual, contemporâneo, que nos ajuda a refletir o que estamos fazendo com esses bichos, muitas vezes para deleite e diversão numa autoafirmação de poder e superioridade como em uma Torada ou Rodeio, espetáculos de crueldade:

 

Os homens não viram

As lágrimas do boi.

Não lhe perguntaram

Se queria se despedir

De sua amada e de seus filhos.

Mataram-no ontem como mataram

Os outros como na manhã de antes de ontem.

Foram estúpidos e cruéis [...]

Outro tema importante na poesia de Alencar é sobre a condição da mulher, oprimida durante anos, aparece servil e domesticada em “Mulheres” poema que retrata a vida de mulheres no interior que fazem suas próprias calcinhas e que não chegam ao orgasmo, servem apenas de depósito de esperma de seus amantes ignorantes. Em outro poema “As melhores mulheres” já vemos uma mulher emancipada e livre, pintora de paredes, que aos poucos vai ganhando espaço no mercado de trabalho, um mercado predominantemente machista onde a desigualdade salarial é absurda, mas a luta dessas mulheres está mudando o cenário. Esse sim, é o retrato da mulher do século XXI. No final o poeta diz: “Há mulheres que são diferentes/Devemos amar as mulheres diferentes/ Essas são as melhores” (Alencar, 2014, p. 39).

Nota-se um coloquialismo na linguagem de fácil acesso, qualquer um pode ler e entender os poemas, mas os mesmo escondem por traz desse coloquialismo, aparentemente simples, sofisticação, tanto nas imagens que suscitam quanto nas ideias que expressam. Aí está o mérito de Alencar como de outros poetas. Alguns escritores fazem malabarismo com a língua, recorrendo aos mais variados recursos, e no final, acabam caindo na mesmice, produzindo uma poesia pasteurizada, cheias de metáforas e alegorias desgastadas. A poesia contemporânea tem o poder de renovar-se e para isso não precisa mais, ou cada vez menos, das experimentações estéticas dos movimentos de vanguarda - o que a tornou hermética - e causou um afastamento do grande público, o que temos é uma retomada da prosa, os poemas hoje parecem pequenas narrativas devido a aproximação da oralidade, é o que vemos nas obras de autores como Angélica Freitas, Bruna Biber, Carlito Azevedo, Fabiano Calixto. Para provar o que estou falando, num contexto mais amplo, universal, cito a ganhadora do prêmio Nobel de Literatura de 1996, a polonesa Wislawa Szymborska, cujos os poemas, construídos numa linguagem coloquial, retratam momentos banais do dia-a-dia, o que os críticos alcunham de “novelinhas”:

Pode-se dizer que a poesia de Szymborska é prosaica pelo tom próximo da fala que caracteriza muitos poemas (mas não todos) e pela quase ausência de um lirismo elevado. Suas biógrafas citam um trecho de uma entrevista que ela concedeu em 1975 na qual admite que se sente um pouco como uma escritora de prosa: “Parece-me que esses críticos que acham que eu às escrevo novelinhas em miniatura, que são na verdade pequeninas histórias com alguma ação -  talvez tenham razão” (PRZYBYCIEN, 2016, p. 14-15).

Em se tratando de imagem, há uma força imagética na poesia de Alencar. O poeta é como um pintor que traz através do poema cenas do espaço poético, dos “mundo impossíveis” usando uma frase de Paulo Plínio Abreu, que só o artista com sua capacidade de criação consegue alcançar. Imagens que colocam em xeque essa realidade concreta e objetiva, é o que acontece em “O grande cargueiro” sobre um navio fantasmagórico que chega e atraca no porto da cidade, assim como no poema “Os manequins da vitrine do mal de Montgomery” cujo seus manequins exóticos despertam um desejo sexual estranho nos passantes, ou em “Lou Reed died” no qual a morte do vocalista do Verveundergroud depois de anunciada é celebrada por jovens e velhos num parque onde todos cantam de mãos dadas a música Vicious sob uma chuva misteriosa e cheiro de alecrim. Imagens de sonhos que aos poucos toma a realidade nos capturando e teletransportando-nos para o mundo sintético e plástico da poesia, tal qual este que nos vem através das formas fixas. É o que observa Claudio Willer no posfácio do livro: “É de Baudelaire a categórica oposição de imaginação e realidade, assim como do natural e artificial, sempre tomando o partido da imaginação e do artificial, por considerar abomináveis a natureza e a realidade” (WILLER, 2014, p. 61). Jogo que os surrealistas adoravam fazer, e ao escavar as infinitas possibilidades da linguagem, consolidaram sua estética, transformando-a num legado. A poesia se encontra nesse limiar entre sonho e realidade, até mesmo aquelas que se propõem retratar a realidade, o fato de pintar em palavras o que não se consegue apreender, já é uma transfiguração, ou seja, outra coisa que não o real. Fora os personagens que atravessam os poemas cujos nomes como Blaschke, Frank Cassani, William Lang,  se confundem com músicos de jazz, atores do cinema, escritores, mas não passam de anônimos que residem no poema, misturados a personagens reais como o músico indiano Ravi Shanka, a atriz americana Grace kelly  tudo isso para dar verossimilhança a criação.  Nas leituras dos poemas do livro Poemas perversos feitos pelo próprio autor e por Claudio Willer num evento de poesia organizado pelo Sesc em Belém, percebe-se versos cheios de erotismo e sensualidade, palavras como “pica” e “buceta”, consideradas vulgares, na poesia de Alencar tomam ar de sagradas, de significados outros, e não estes deturpados por uma moral hipócrita estabelecida, afinal, é por conta deles – do falo e da vulva – e a partir de suas mutuas vontades que estamos aqui. Num todo, a obra parece uma Ópera esdrúxula, onde os atores, neste caso os personagens dos poemas, encenam a fragilidade humana perante a vida e a violência do homem contemporâneo.  

 

Celso de Alencar é da velha-guarda (já escreve a mais de trinta anos) faz parte de uma geração Maldita, seus livros não estão nas melhores casas do ramo, mas a sutileza que emprega através de uma imagem, da palavra que ao invés da razão remeta a loucura, renovando temas antigos como a morte e a solidão, ou explorando temas atuais como a condição da mulher e a violência com os animais, o colocam entre os grandes da poesia contemporânea.

Rogério A. Tancredo

Universidade Federal do Pará

rogertancredo33@gmail.com

1 Fala do autor no bate papo sobre poesia intitulado “Poesia numa hora dessas”

realizado pelo Sesc Bulevar em outubro de 2016 em Belém do Pará (N.A).

Referências

ALENCAR, Celso de. O coração dos Outros, Pantemporânea – São Paulo, 2014.

GINSBERG, Allen. Mente Espontânea – entrevistas 1958-1996, Novo Século – São Paulo, 2013.

SZYMBORSKA, Wislawa. Um Amor Feliz, Companhia das Letras - São Paulo, 2016.

bottom of page