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 ©  Edições Polichinello

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CELSO DE ALENCAR nasceu (1949) em Fortaleza. Migrou para o estado do Pará e lá viveu nas cidades de Abaetetuba e Belém. Reside na cidade de São Paulo desde 1972. É tradutor da poesia de Rubén Darío. Autor de, entre outros, O Primeiro Inferno e Outros Poemas (1994 e 2001); A Outra Metade do Coração (2003); Testamentos (2003); Livro Obsceno (2008);  Poemas Perversos (2011), O coração dos outros (2014)

Foto | Mariza Alencar

Os Manequins da vitrine do mall de Montgomery

Era estranha a vitrine.

Um veneno. Uma bebida instigante.

No chão havia folhas secas, marrons e amarelas,

onde se formava um tapete que se movia

como se dedos o empurrassem para cima.

Havia a metade de uma pequena vaca,

a metade de uma galinha e a metade de um porco,

todos esculpidos em bronze,

e três pássaros coloridos, empalhados, fixados

num trapézio sustentando

por crinas de cavalos.

 

Os manequins.

Quatro mulheres altas, magras, brancas, negras, belas.

Parávamos e ficávamos aguardando a passagem da tarde.

Encantavam-nos e venerávamos as quatro mulheres

dos nossos corações ainda moços.

Suas pernas traziam ossos mais longos

suas mãos eram mais compridas e deslumbrantes

e nas suas bocas largas se abrigavam ninhos de pequena aves.

 

Sábado esconderam a vitrine.

Foram pregadas folhas grandes de papel opaco.

Foram apagadas as lâmpadas interiores.

A fresta deixada entre uma folha e outra

permitia-nos olhar a metade da galinha ainda exposta.

Nada mais restava, nem a vaca, nem o porco,

nem o trapézio, nem os pássaros.

Nada foi noticiado nos jornais sobre o sangue na vidraça,

bem menos sobre as cascas de maçãs jogadas na calçada.

Era uma árvore desenhada de sangue

numa breve névoa de primavera.

Uma violência impalpável, bruta.

Uma loucura imensa arremessada

sobre os jardins e sobre nossos ombros ainda moços.

«O coração dos outros» | 2014

 

Lou Reed morreu

                                                                  Para Arruda e Alzira E

Era um domingo de piquenique no Lago Alice.

A mulher com os braços tatuados

chegou gritando, desesperada, para suas amigas

que bebiam suco de laranja sobre uma grande toalha.

– O Lou Reed morreu. Morreu o Lou Reed.

E elas se abraçaram e choraram e de repente as águas do lago

começaram a borbulhar e todas as pessoas, sem exceção,

que ali se encontravam, sentiram pingos de água quente

sobre seus corpos.

E todos os homens velhos

mais de cento e quarenta velhos

todos com mais de sessenta e cinco anos

deram-se as mãos e debaixo de intensas lágrimas

cantaram a musica Vicious

e a eles se juntaram as três amigas

e as crianças e seus pais e os cachorrinhos.

Todos cantavam e choravam quando as águas se acalmaram

e então um forte perfume de alecrim selvagem surgiu no ar,

mas não havia pés de alecrim nas margens do Lago Alice.

Foi tudo muito estranho, pois não havia ventania,

nem pássaros

transportando folhas de alecrim

em seus longos bicos coloridos.

«O coração dos outros» | 2014

Ernest Dampzell

 

 

Hoje vi numa revista de uma cidade praiana

o nome de Ernest Dampzell.

Pensava que tivesse morrido.

Continua vivo.

É um dos periodistas.

Nos tempos do governo anterior

éramos ainda jovens e os homens mais velhos

diziam-nos: tenham cuidado com o que vão falar.

Ernest Dampzell está na sala.

Diziam-nos que Ernest Dampzell era militar

e olheiro do governo anterior.

Então falávamos de amor,

do vento derrubando as folhas das árvores

e da chuva que chegava.

Ernest Dampzell se destacava.

Era um homem mais velho,

alto, musculoso, branco, sisudo.

Andava sempre acompanhado por uma mulher loira,

linda e extremamente atenciosa.

Seu nome era Grace. Chamávamos de Grace Kelly.

Todos nós éramos apaixonados pela Grace Kelly.

Nunca mais apareceu nos nossos encontros.

Ernest Dampzell ainda vive.   

«O coração dos outros» | 2014

O coração dos outros

 

Nós não amamos o coração dos outros, meu irmão.

Desde março eu venho lutando para ser bom,

afagando os pelos dos cachorros brilhantes.

Ontem arremessaram com uma força estúpida

um pão nas minhas costas.

Quando virei-me,

um homem corria com sua carroça de rodas de borracha,

cheia de papelão e restos de madeira queimada.

Satanás! Vai para o inferno, imbecil!

Gritei-lhe, meu irmão.

Era um pão seco, duro,

sujou-me a roupa, doeu-me o pescoço.

 

Em abril,

quando eu caminhava para o almoço,

uma mulher com colar de papéis coloridos,

uma mulher miserável, moradora de rua,

chamou-me, mas eu cerrei os ouvidos.

Não lhe dei atenção.

Mais recente,

antes que se iniciasse o inverno,

outra mulher, bem mais velha e com uma bengala,

pediu-me que lhe comprasse um prato de comida.

Disse-lhe que não tinha dinheiro.

Eu tinha dinheiro, meu irmão,

não lhe comprei a comida.

 

Luto para ser bom,

mas às vezes sinto que ainda existe

violência e tumulto em mim.

Quando chego em casa,

acendo a lanterna

e faço exercícios de bondade perpétua,

acariciando as minhas mãos.

Deixo-as bem abertas, espalmadas

e aperto loucamente os ossos dos dedos.

 

Penso às vezes

que não amamos o coração dos outros, meu irmão.

«O coração dos outros» | 2014

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